NVCM - EPISÓDIO 06 - TEMPORADA 6

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  • čas přidán 6. 08. 2024
  • Crônica: Minha meia velha
    Não sei exatamente por que eu insistia em usar aquelas meias velhas. Esgarçavam com muita facilidade de tão remendadas.
    volta e meia, tinha que cerzi-las, uma ocupação oportuna e recente que me ajuda a preencher o tempo ocioso quando paira aquela inatividade criativa.
    Para uma pessoa que mora sozinha, manias, hábitos e outras distrações acabam se tornando banais e toleráveis, pelo menos até que a chegada de um elemento estranho mostre/desvele a coisa toda que passava sem a gente dar nota.
    Assim era com a minha meia velha de dormir. Eu não sei como e quando ela se tornou minha.
    É uma dessas meias sociais finas que os homens usam para eventos sociais. Será que ela foi do meu pai?
    Eu me recordo de observar o modo como ele calçava as suas meias: primeiro dobrava a metade final das meias, que vai do calcanhar a canela, por sobre a parte inicial que tem a forma para o encaixe dos dedos.
    Aí, metodicamente, ele enfiava a meia assim dobrada e depois era só ir desenrolando, de tal forma que ela deslisava suavemente até o fim, vestindo o pé desde os dedos até a canela.
    Eu achava uma beleza aquilo tudo! Uma perfeição! Tinha uma ciência naquele gesto inteligente do meu pai.
    Essa memória me faz cogitar ter herdado essa meia social masculina do meu pai, que não sei se era branca ou bege... Não sei... somando-se a isso o fato de minha mãe ter muita dificuldade de jogar coisas fora, a meia deve ter ficado esquecida tempo demais em alguma gaveta e perdeu sua cor original...
    Para vocês terem uma ideia do meu apego sincero a meia, eu cuidava para que ela não se desmanchasse durante as lavagens. Não usava água sanitária.
    Também não esfregava os pontos mais sujos pelo uso porque era temerário demais, podia se rasgar na minha mão.
    Portanto, no processo de lavagem, cabia apenas mergulhá-la em sabão em pó, amaciante e deixar só um tempinho para ela se impregnar com os poderes mágicos do sabão em pó e o cheiro agradável do amaciante e, depois apertá-la, com cuidado, entre as mãos, sem torcer, só para escorrer o excesso de água e pôr para secar no varal. Era tão fina que secava bem rápido!
    Assim velha, assim esburacada, assim por um fio, aquela meia era ideal, cumpria a função de agasalhar os meus pés no frio artificial do meu quarto que o meu velho ar-condicionado espalha, em pleno Recôncavo Baiano, aqui no Nordeste do Brasil, bem do lado de baixo da linha do Equador.
    Crise no paraíso: Compreendi que os dias daquela meia estavam contados. Ia me submeter a uma cirurgia complexa e, precisava de gente querida que me desse uma força durante a convalescência.
    Certamente ficaria insegura de usar aquele farrapo amado de meia na frente dessas pessoas que viriam cuidar de mim.
    Sei que, por amor, me deixariam ficar com as minhas manias. Mas era demais pedir a alguém que calçasse em mim aquelas meias em estado terminal...
    Até eu mesma, quando deixo de lado o hábito e tomo distância, olho para as meias e penso que é muito desleixo insistir em usar uma ‘coisa’ que é a prova moribunda de que foi feita para se tornar obsoleta e ser substituída.
    Sou como todo mundo, uma parte de mim se adaptou a mentalidade capitalista que, desde a modernidade acredita que as coisas não são feitas para durar. Acabam, se consomem até morrerem, às vezes, prematuramente.
    Em troca dessa aceitação, nos prometeram felicidade, mas ela não veio até hoje, nem fácil nem difícil...
    De volta as minhas velhas meias, dei mais uma olhada, avaliando se, quem sabe, era possível salvá-las da extinção... que nada! Hora de dizer adeus...
    Dias depois, descobri onde comprar meias exatamente iguais: Macias, beges e perfeitas para meu uso.
    Levei para casa dois pares, um branco e um bege das minhas novas meias sociais masculinas para dormir.
    Com elas não passei vergonha na companhia de quem veio cuidar um pouquinho de mim.
    Crônica inédita de Nadia Virginia B. Carneiro
    ©Todos os direitos reservados Nadia Virginia Barbosa Carneiro

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