NVCM - EPISÓDIO 05 - TEMPORADA 6

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  • čas přidán 21. 04. 2024
  • Crônica: Acabamento
    Enquanto conversava, tentava ser discreta na operação de retirar a borda da alça da minha bolsa.
    Eu não sabia que as alças das bolsas tinham esse acabamento final, como uma borda, uma espécie de lombada delicada colada em torno da alça. Já perceberam isso?
    A primeira vez que dei de puxar esse fio quase imperceptível, foi por casualidade. Sem querer, talvez eu estivesse ajudando a acelerar o já avançado desgaste da bolsa porque eu me canso delas antes mesmo de se desgastarem.
    Mas, a culpa é toda minha porque, ironicamente, elas duram tanto, demoram de se desagastar porque eu sou extremamente zelosa com as coisas que eu tenho. Elas duram tempo demais…
    Acho que procurei e achei, primeiro pelo sentir, tocando, buscando pela sensibilidade das mãos, com as mãos, um modo de fazer ruir a relação perene demais entre mim e aquela bolsa…
    observei que havia uma ponta solta na aparente perfeição lisa da alça, feita de emendas quase imperceptíveis.
    Era só a ponta de um desastre completo, uma ação em cadeia abalando o meu mundo.
    A propósito, a alça da bolsa era na cor “gelo” e, acho que isso facilitou, a percepção visual e tátil do desgaste, com uma ponta do contorno se desgarrando do leito onde descansou colada as outras emendas por muitos anos de uso.
    Disfarçando a repentina compulsão por destruir o que permitia que a bolsa existisse quase perfeita, puxei, fio por fio até deixar a alça crua, rústica com o couro que a fez em carne viva.
    Era novo para mim aquele exercício de vandalizar o mundo. Pareci desajeitada…
    A questão é que eu estava tão cansada de dar um jeito nas coisas…
    Para ter um lar para chamar de meu, desde sempre optei por fazer parte de um tipo particular de pessoas dedicadas a manter o mundo girando.
    Tudo tem que ficar bem. Inventamos por anos estratégias para consertar quase tudo nesse mundo, cada um e cada uma cuidando dos seus…
    Meu pai nunca ficou doente, minha mãe não ia morrer nunca, meu irmão era um bom homem, a sua bondade era a garantia da remissão e da remição da doença invisível que o consumia…
    Assim eu ia vivendo.
    Consertando o que podia, arrumando um jeito de meu mundo continuar girando no eixo mesmo inclinado, porque um certo grau de dificuldade faz parte do trabalho.
    Só que frases feitas não garantem nem salvam vidas.
    Todas as minhas certezas eram temporárias, um dia a mais ou um dia a menos, elas entrariam em colapso.
    Mas, tudo bem, eu guardava uma caixa cheia de novas esperanças nalgum lugar em mim.
    Eu sabia que nenhuma das premissas de um mundo em ordem funcionaria para sempre, mas preferia não pensar.
    Só que hoje não. Naquele dia não.
    Por fuga, cansaço, falha humana do meu sistema de crenças, seja o que for, estava retirando, sem piedade, todo o acabamento da alça da minha bolsa.
    Que se dane!
    Crônica inédita de Nadia Virginia B. Carneiro
    ©Todos os direitos reservados Nadia Virginia Barbosa Carneiro

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