NVCM - EPISÓDIO 07 - TEMPORADA 06
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- čas přidán 6. 05. 2024
- Crônica: Entregar
Sou muito observadora. Não tenho ouvido absoluto, mas creio que escuto bem. Sou o tipo de pessoa que sabe ouvir, paro para ouvir.
A oralidade, permanentemente, mutante da nossa língua portuguesa desafia a minha capacidade de apreender e acompanhar a dinâmica, em tempo real, do nascimento, vida e morte de certas palavras que se tornam as queridinhas do momento no vocabulário cotidiano.
O verbo Entregar, de uma hora para outra, passou a substituir outros verbos que, a meu ver, cumpriam bem a sua função.
Posso dar um ou dois exemplos: Ao invés de “… no seu mais recente trabalho, ela ‘entrega’ uma obra…”; “Hoje em dia, com as redes sociais, é mais fácil ‘entregar’ uma imagem…”.
Notem que o verbo entregar, assume o lugar dos antigos verbos mais comumente usados, tais como Oferecer, Criar e, em alguns casos, até assumem o lugar dos verbos Fazer, Dar, Fornecer, Promover.
Entregar, é um verbo transitivo direto e indireto. Significa passar para as mãos de alguém; dar algo a alguém. O verbo ‘Oferecer’ é transitivo direto e indireto ao mesmo tempo também, pois quem oferece, oferece alguma coisa a alguém.
Alguém poderia dizer, em defesa do verbo entregar que ele tem a vantagem de encurtar o caminho, uma vez que os outros verbos citados e tradicionalmente mais usados, dependem do que só consigo chamar de duração, ou seja, da temporalidade das coisas.
Por mais que eu tente identificar o momento em que entregar virou um verbo adjetivo, na medida em que parece ter parentesco com o ‘politicamente correto’… Parece que ao dizer ‘entregar’, ao invés de dar ou oferecer, o gesto ganha um status novo, positivamente elevado.
Eu tenho cá minhas dúvidas… Desde 2020, com a pandemia da Covid-19, perdemos tanto, sofremos, tanto que, nos anos seguinte, 2021 e 2022, aceleramos ainda mais nosso cotidiano.
Parece que o viver ficou mais urgente. Não dá mais tempo de, com calma, fazer, criar, promover, oferecer.
Não dá tempo!
Então para que mentir? Importa, tão somente entregar, seja o que for, do jeito que der, sem perguntas. Uma estratégia de seguir adiante, “passar a bola”, evitando lidar com tudo o que envolve tempo, dedicação, calma. Tipo: Desculpe, mas, nada a ver! Entregar é que importa!
Mas, entregar o que? Como? A quem?
Essa palavra bonita caiu no gosto de muita gente por aí, afinal, estamos muito ocupados e ansiosos preenchendo os vazios do viver para nos fazer estas e outras perguntas.